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Verdadeiro Veleiro

Ribeira d’Ilhas, 2020 – Em muitas praias de areia, tropeça-se numa faixa mais ou menos larga de algas, sargaço, ervas marinhas, pedaços de madeira, pedra-pomes, fragmentos de conchas, ovos, restos de criaturas marinhas e aves marinhas – e, infelizmente, bastante lixo. Esta “linha de maré” é um verdadeiro tesouro para os colecionadores de praia. Especialmente após tempestades, podemos encontrar aqui todo o tipo de coisas incomuns que o mar agitado lançou do fundo à superfície e trouxe até à costa. Não há muito tempo, por exemplo, a praia estava coberta com pequenos pedaços redondos de folha com uma superfície estriada estranha – lembrando os selos de tampas de molhos de churrasco. Às vezes, essas acumulações ocorrem quando uma carga inteira de objetos flutuantes cai ao mar, ou quando o material flutuante é ordenado hidrodinamicamente devido à sua resistência. Esta última hipótese parecia promissora – mas, neste caso, não se tratava de lixo plástico…

A folha “Lift n’ Peel™”, usada frequentemente para selar alimentos, produtos químicos ou medicamentos, tem uma semelhança surpreendente em forma e textura com a Velella.

… só percebi isso quando encontrei não apenas um “esqueleto” translúcido, mas também uma pequena medusa colorida de forma idêntica na minha mão – que identifiquei com a ajuda do Google Lens como Velella velella. Tenho de admitir que até então não conhecia esta criatura de todo. E no entanto, tanto em alemão como em inglês existem vários nomes comuns para ela: “veleiro ao sabor do vento”, “barquinho de São Pedro”, “medusa azul”, “by-the-wind sailor”, “sea raft”, “purple sail”… O que sugere que se trata de uma espécie bem conhecida. Contudo, esta medusa velejadora, cujo nome latino Velella significa simplesmente “velinha”, é um organismo verdadeiramente extraordinário. Tal como a maioria das medusas, é constituída por uma colónia de células especializadas (pólipos) com tarefas distintas, mas sem qualquer centro de comando.

Ela vive entre o oceano e a atmosfera, alimentando-se de pequenos organismos planctónicos, que captura com as células urticantes dos seus tentáculos. A presa é absorvida pelas bocas dos pólipos defensivos internos ou por um grande pólipo alimentar (sipho) no centro da parte inferior. Felizmente, os seus dardos microscópicos não conseguem atravessar a pele humana, por isso podemos tocá-la sem problemas. A maioria das Velella flutua em águas tropicais, exposta diretamente à radiação solar. Para proteger o ADN contra os raios UV, os núcleos celulares estão rodeados por pigmentos que absorvem luz, conferindo-lhes uma cor azul profunda e deslumbrante. A parte inferior, por outro lado, é muito clara, tornando-as quase invisíveis para predadores vindos das profundezas.

Ainda mais desafiante que a radiação solar são as forças cortantes do vento e das ondas, que sacodem este organismo tão delicado. Por isso, as câmaras de ar do seu flutuador circular, organizadas em anéis concéntricos, e a pequena vela triangular são reforçadas com tubos de quitina extremamente resistentes. A estrutura é tão engenhosa que já inspirou engenheiros.

Como se viver entre os elementos não fosse desafio suficiente, a Velella também tem um inimigo persistente: o caracol-violeta (Janthina janthina), também ele um velejador nato. O seu flutuador e vela são feitos de bolhas resistentes que ele cria ao prender ar numa secreção corporal viscosa. De cabeça para baixo, suspenso sob esta jangada de espuma, ele se deixa levar pelas correntes. Como vive de forma invertida, a sua coloração contra-sombreamento também é invertida: branca por cima, azul por baixo – com o mesmo efeito de camuflagem.

Quando encontra uma Velella, o caracol abandona a sua jangada e segue viagem como “carona”. Muitas vezes, vários caracóis-violeta pendem sob a medusa e alimentam-se da sua substância. Enquanto não exagerarem no apetite e a medusa tiver sorte na pesca, esta consegue regenerar-se, mantendo o equilíbrio da comunidade flutuante. Mas se os caracóis forem demasiado gulosos e danificarem o flutuador, a flutuabilidade colapsa. Então, todos afundam e morrem, pois os caracóis não conseguem formar novas bolhas sem contacto com a superfície.

O caracol-violeta (Janthina janthina) alimenta-se da Velella enquanto é transportado por ela. A sua coloração contra-sombreada é claramente visível.

Apesar de lhe terem atribuído 32 nomes científicos diferentes ao longo da história, os cientistas estão hoje certos de que existe apenas uma espécie – e que Velella velella é a única espécie conhecida do gênero Velella. Isso é bastante raro na biologia. Estamos, portanto, perante um verdadeiro unicúm, que acabou por recuperar o seu nome original, dado pelo próprio Lineu (1758).

Por várias razões, os biólogos decidiram não considerar as medusas como indivíduos, mas sim como “colónias com divisão de trabalho” (como uma colónia de formigas). Mas ao observar o que se passa sob a pequena vela, com todas as partes ligadas por canais e grupos de pólipos especializados que funcionam como “órgãos”, é legítimo questionar essa definição. Afinal, Velella realiza ações coordenadas: duas vezes por minuto, toda a parte inferior contrai-se, expelindo o ar das câmaras em anel por poros, e depois relaxa para aspirar ar fresco. A maioria dos seres chamaria a isso de “respirar” – embora as medusas tecnicamente não respirem. O que realmente corresponde à ideia de colónia são os “trabalhadores convidados” a bordo. Na parte superior, vivem dinoflagelados – algas unicelulares que prosperam na luz. Quando a pesca é escassa, servem de reserva alimentar e são digeridos. Nas células sexuais na parte inferior, vivem bactérias simbiontes que lhes conferem um tom amarelo-esverdeado. São passadas aos descendentes como “provisão”.

A reprodução da Velella é tudo menos romântica. Pólipos sexuais especializados libertam alternadamente medusas masculinas e femininas. Cada uma carrega metade do código genético de uma nova colónia. Elas têm de se fundir para formar uma larva completa. Antes disso, recuam para uma profundidade de 1.000 metros, onde a escuridão e o frio proporcionam maior segurança. Uma vez digeridas as bactérias e algas levadas consigo, pouco alimento resta. Mas o regresso à perigosa superfície é feito por um mecanismo fascinante: após a fusão, a larva torna-se flutuante graças a uma gota de óleo que se forma no seu interior. Isso torna-a leve o suficiente para flutuar suavemente de volta à luz e formar uma nova colónia. Com boas condições alimentares, as Velella podem reproduzir-se de forma explosiva. Em aquários, as medusas libertadas formam nuvens densas que cobrem o fundo em pouco tempo. No Atlântico, já foram observados enxames com até 260 quilómetros de extensão – vela com vela!

Acontecem frequentemente encalhes em massa, formando tapetes azulados ao longo de quilómetros de costa, e por vezes até muros de dois metros de altura com milhões de animais mortos. Quando este fenómeno foi estudado mais a fundo, descobriu-se que existem duas formas diferentes de vela. Ambas parecem ocorrer numa proporção de 50:50 na natureza, mas os encalhes contêm sempre apenas um dos tipos. A forma da vela determina a deriva: as com vela inclinada para a direita são empurradas nessa direção, enquanto as com vela invertida são levadas para a esquerda. Assim, nunca toda a população encalha de uma só vez – uma parte será sempre desviada para o mar. Genial, não? Isso lembra-me os versos inspiradores de Ella Wheeler Wilcox:

Tis the set of the sails and not the gales, that tells it the way to go.

One ship drives east and another drives west, with the selfsame winds that blow.

Like the winds of the seas are the ways of fate, as we voyage along through the life.

Tis the set of a soul, that decides its goal, and not the calm or the strife.

Tradução livre:

Um barco vai para o leste, outro para o oeste, com os mesmos ventos a soprar.

É a posição das velas, e não a tempestade, que indica por onde navegar.

Como os ventos do mar, é o destino a soprar, guiando a viagem da vida sem cessar.

É a disposição da alma que aponta a direção, não o conflito ou a calmaria, não.

A Velella nasce com uma orientação de vela fixa e depois descobre se o vento a levará à praia mortal ou de volta ao mar seguro. Nós, no entanto, podemos escolher como ajustar as nossas velas – e se queremos navegar rumo ao céu. Um exemplo encorajador da Bíblia é o jovem Daniel, que “decidiu no seu coração” manter-se puro (Dn 1:8), navegando firme por um dos séculos mais turbulentos da história. As circunstâncias da vida não podem impedir a nossa jornada – apenas influenciar quanto tempo demoramos a chegar ao destino. Nesse espírito: bom vento e mar tranquilo!

Provérbios 4:23: Acima de tudo, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida.

Referências:

Betti, F: Massive strandings of Velella velella (Hydrozoa: Anthoathecata: Porpitidae) in the Ligurian Sea. The European Zoological Journal 2019; 86(1):343-353

Bieri, R: A Morphometric Study of Velella (Hydrozoa) from different Oceans. Publications of the SETO Marine Biological Laboratory 1977; 24(1-3):59-62

Bieri, R: Dimorphism and Size Distribution in Velella and Physalia. Nature 1959; 184:1333-1334

Francis, L: Design of a Small Cantilevered Sheet: The Sail of Velella velella. Pacific Science 1985; 39(1):1-15

Francis, L: Sailing Downwind: Aerodynamic Performance of the Velella Sail. Journal of Experimental Biology 1991; 158:117-132 Schembri, PJ: When the Beaches Turn Blue. Gozo Observer 2016; 34:3-5

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